Clonagem terapêutica... e polêmica

Lygia Pereira

Em 1997 foi anunciado o primeiro mamífero gerado a partir de células somáticas de um indivíduo adulto através da transferência nuclear, a ovelha Dolly. Em sua trilha foram gerados clones de camundongos, bovinos, e porcos, entre outros. Porém, desde 1997 aprendeu-se muito pouco sobre os mecanismos de reprogramação celular que fazem um núcleo já diferenciado, quando introduzido em um óvulo enucleado, reiniciar o programa de desenvolvimento embrionário e dar origem a um ser completo, um clone. Uma coisa aprendemos: que a clonagem como forma de reprodução de mamíferos é extremamente ineficiente. Em geral, as taxas de sucesso até 2002 variam entre 0.4-3% dependendo da espécie e do tipo celular utilizado (ver tabela abaixo).

Célula doadora Espécie Oócitos reconstr. Nascimentos vivos Obs.
Fetal
Fibroblasto Camundongo 3057 5 (0.2%)  
  Bovino 276 4 (1.4%) 1†
  1896 6 (0.3%)  
Cabra 285 3 (1.1%)  
Porco 210 1 (0.5%)  
Ovelha 417 14 (3.4%) 11†
Adulta
Gld. Mamária Ovelha 227 1 (0.4%)  
Granulosa Camundongo 2468 31 (1.3%)  
Fibroblasto Bovino 440 6 (1.4%) 2†
    664 8 (1.2%)  

Tabela 1: Taxas de sucesso da clonagem reprodutiva de mamíferos (adaptado de Yanagimachi R. Cloning: experience from the mouse and other animals. Mol. Cel. Endrocrin.187:241-8, 2002). (†) Animais mortos após o nascimento.

No entanto, Dolly foi um marco na história da ciência, demonstrando pela primeira vez que uma célula já diferenciada era capaz de acessar toda a informação contida em seu genoma e dar origem a todos os tipos celulares encontrados em um indivíduo adulto. Esses mesmos mecanismos podem ser utilizados para a geração de tecidos específicos desse indivíduo, um processo chamado de clonagem terapêutica (Figura 1). Na clonagem terapêutica, o embrião clonado, gerado pela transferência nuclear (um conglomerado de aproximadamente 100 células), é dissociado no laboratório para a obtenção das chamadas células-tronco (CTs) embrionárias, células pluripotentes, que dariam origem a todos os tipos de células do embrião. Essas células podem ser multiplicadas em cultura, mantendo essa capacidade de diferenciação quase ilimitada. Alterando suas condições de cultivo, pode-se induzir a diferenciação dessas células em tecidos específicos, como músculo, neurônios, hepatócitos e até óvulos e espermatozóides. Assim, as CTs embrionárias podem ser fonte de tecidos para transplantes. Nos últimos 15 anos, experimentos com CTs embrionárias de camundongo vêm demonstrando o potencial terapêutico dessas células diferenciadas in vitro. A utilização de um embrião clonado como fonte de CTs embrionárias permitiria a geração de tecidos geneticamente idênticos ao paciente, logo, imunologicamente compatíveis, eliminando-se o risco de rejeição do transplante.


Figura 1: Clonagem terapêutica. A partir de uma célula somática do paciente, é gerado um embrião clonado que, dissociado, dará origem a CTs embrionárias geneticamente idênticas ao paciente. Essas CTs embrionárias podem ser diferenciadas em tecidos específicos de acordo com a doença do paciente. (reproduzido de "Clonagem, fatos e mitos", Editora Moderna, 2002)

A capacidade de CTs embrionárias de se diferenciar em qualquer tipo de tecido representa um enorme potencial de aplicação médica. De acordo com dados do Centers for Disease Control and Prevention, nos Estados Unidos, aproximadamente 3 mil norte-americanos morrem todo ano de doenças que no futuro poderão ser tratadas com tecidos derivados de CTs embrionárias. Um passo importante nessa direção foi o estabelecimento de linhagens de CTs embrionárias humanas. Experimentos realizados com CTs embrionárias murinas poderão ser repetidos e adaptados para as linhagens humanas.

A geração de CTs embrionárias imuno-compatíveis através da transferência nuclear e seu uso terapêutico in vivo (a clonagem terapêutica) já foram demonstrados em modelos animais. Resta agora decidirmos se essa metodologia será utilizada em seres humanos. A obtenção de CTs embrionárias envolve obrigatoriamente a destruição do embrião (blastocisto - um embrião pré-implantação de 5 dias - basicamente um conglomerado amorfo de 100 a 200 células), o que em certas culturas/religiões é inaceitável (Figura 2). Por isso, a clonagem terapêutica tem sido tema de grande polêmica em diversos países, inclusive na Organização das Nações Unidas (ONU).
 

Figura 2: Blastocisto. Embrião humano de 5 dias que deve
ser destruído para a obtenção de CTs embrionárias.

Em dezembro de 2001, a ONU decidiu elaborar uma Convenção Internacional Contra a Clonagem Reprodutiva de Seres Humanos, deixando claro que a clonagem como forma de reprodução de seres humanos é internacionalmente repudiada e uma ameaça à dignidade do ser humano da mesma forma que a tortura, a descriminação racial, o terrorismo etc. Durante as reuniões para a elaboração desse tratado internacional, com a participação de mais de 80 países, ficou clara a existência de um único consenso internacional: a clonagem não deve ser utilizada como forma de reprodução assistida em seres humanos.

Já a aplicação da ciência da clonagem na geração de embriões clonados para fins terapêuticos - a clonagem terapêutica - foi alvo de grande polêmica. Enquanto os EUA defendem os direitos do embrião a qualquer custo - apesar de todo dia destruírem legalmente centenas de embriões excedentes em suas clínicas de fertilização in vitro - países como Israel, China e Inglaterra permitem seu uso para fins terapêuticos. A posição norte-americana, apoiada pela Santa Sé, Itália e Espanha, é de que o processo de clonagem, e não o produto final - o clone humano -, deve ser internacionalmente banido. Mesmo que isso impeça o desenvolvimento de uma área promissora da medicina regenerativa. Essa é uma discussão complexa que envolve aspectos legais, éticos, culturais e religiosos, e que terá que ser decidida individualmente por cada país. O conflito de posições em relação à clonagem terapêutica foi tal, que até o final de 2003 impediu a elaboração da Convenção Internacional contra a clonagem reprodutiva.

Além dos dilemas ético envolvidos na destruição do embrião para a obtenção das CTs embrionárias, aqueles contra seu uso argumentam que, se permitida a geração de embriões clonados para pesquisa, isso abrirá uma brecha para a clonagem reprodutiva e surgirá um comércio de embriões/óvulos. Toda nova tecnologia está sujeita ao mau uso. Esse risco não justifica a interrupção do desenvolvimento daquela tecnologia. O que precisamos é de legislação e mecanismos de vigilância que nos protejam dos riscos do uso degenerado dos embriões/óvulos para pesquisa, sem impedir o avanço da mesma.

Finalmente, um argumento "científico" utilizado pelos antagonistas ao uso das CTs embrionárias para terapia de reposição de tecidos é que não há necessidade das mesmas uma vez que temos as CTs adultas, encontradas principalmente na medula óssea e no sangue do cordão umbilical e placentário, entre outros tecidos. Sem dúvida, as CTs adultas são uma fonte promissora e não-polêmica de tecidos autólogos para transplante. No entanto, ainda não podemos garantir que essas possuam o mesmo potencial de diferenciação que as CTs embrionárias. Assim, o momento é o de abrir o leque das pesquisas, investir em todos os tipos de CTs para determinarmos o potencial terapêutico de cada uma delas. Além disso, o que aprendermos com as pesquisas com as CTs embrionárias nos permitirá manipular as CTs adultas de forma a explorar toda a sua capacidade de trans-diferenciação.

Nos Estados Unidos o uso de embriões humanos, mesmo aqueles descartados nas clínicas de reprodução assistida, em pesquisas financiadas pelo governo é proibido. Essa posição é repudiada pela comunidade científica que, em 1999, se manifestou formalmente através de uma carta assinada por 67 cientistas premiados com o Nobel publicada na revista Science.

Por outro lado, como são permitidas pesquisas com CTs embrionárias estabelecidas antes da proibição ou através de financiamento privado ou estabelecidas em outros países, o National Institutes of Health (NIH) criou várias linhas de financiamento voltadas para o desenvolvimento das pesquisas com CTs embrionárias 58. Essas linhas incluem projetos voltados à diferenciação dessas células em diferentes tecidos; à compreensão dos mecanismos moleculares de totipotência e diferenciação das CTs embrionárias; à formação de pessoal qualificado (cursos de treinamento em cultivo de CTs embrionárias; bolsas para estágios em laboratórios que trabalham com CTs embrionárias); ao estabelecimento de bancos de linhagens de CTs embrionárias disponíveis a grupos de pesquisa, entre outros. Esse investimento reflete a importância dos estudos com CTs embrionárias, tanto aplicados quanto básicos.

No Brasil, a nova Lei de Biosegurança, aprovada pela Câmara dos Deputados no início de fevereiro de 2004, proíbe "a produção de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível". Por outro lado, permite a "clonagem terapêutica com células pluripotentes", o que é uma grande contradição já que a clonagem terapêutica, como já vimos, necessariamente envolve "a produção de embriões humanos destinados a servir como material biológico disponível".

Confusões conceituais à parte, é uma lástima que o país ceda às pressões de grupos religiosos e proíba de forma radical a pesquisa com embriões humanos. Concordo que este seja um material biológico precioso, mas a proibição total representa um atraso para o desenvolvimento da ciência no país. Poderíamos criar mecanismos de vigilância e legislações que permitissem esse tipo de pesquisa por grupos qualificados, credenciados de acordo com sua capacidade demonstrada na área - isso foi feito com muito sucesso em relação ao acesso a materiais radioativos, por exemplo. O Brasil perde uma grande oportunidade de ter uma vantagem competitiva na promissora área de pesquisa com CTs embrionárias. A permissão controlada nos tornaria líderes nesse tipo de pesquisa na América Latina, atraindo pesquisadores de outros países que nos ajudariam na formação de novos pesquisadores nessa área. Depois de tantos anos de investimento em pesquisa, temos os cérebros, temos a infra-estrutura - agora nos falta a lei.
 

Lygia Pereira é bióloga e professora do Instituto de Biociências, da Universidade de São Paulo.

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